quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Hotel Fratenité

Aquele que não tem com o que comprar uma ilha
aquele que espera a rainha de sabá na frente de um cinema
aquele que rasga de raiva e desespero sua última camisa
aquele que esconde um dobrão de ouro no sapato furado
aquele que olha nos olhos duros do chantagista
aquele que range os dentes nos carrocéisa
quele que derrama vinho rubro na cama sórdida
aquele que toca fogo em cartas e fotografias
aquele que vive sentado nas docas debaixo das gaivotas
aquele que alimenta os esquilos
aquele que não tem um centavoaquele que observa
aquele que dá socos na paredeaquele que grita
aquele que bebeaquele que não faz nada
meu inimigodebruçado sobre o balcão
na cama em cima do armário
no chão por toda parte
agachadoolhos fixos em mimmeu irmão


Hans Magnus Enzensberger

(tradução: Arnaldo Antunes)

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Noite

Era ela negra, como a noite
e negra envolvia-me em laços
me revestia de seu calor,
e pernas e braços
Feito a noite, com seu negro manto,
de prazeres e encantos

Negra linda, negra noite

Desferia contra mim seu perfume
e seus beijos feito açoite
Sedutora como a noite que a lua cheia anuncia
e eu (que bohêmio por exelencia),
por meu turno, dentro dela me perdia

Linda negra, negra noite

Noite que me chegara inesperada
em pleno sol do meio-dia
e meu dia fez-se noite, linda e negra
que ébrio me fazia

Linda negra, negra noite
E sob o mento de negra-noite
negras-curvas, negros-olhos,
e os negros-cabelos,
que por teus ombros qual a noite caiam

Linda negra, negra noite
E entre os lábios noturnos
seu sorriso de estrelas
e o brilho que me luzia
A guiar-me por seu corpo
pelos doces seios, fértil ventre
grossas coxas
por sua fenda de noite ardente
e por seu beijo de noite fria

Linda negra, negra noite
Rainha-guerreira, deusa-africana
de classe-operária sua gana
e a estrada que que forjava
e para si mesmo fazia.

Ela negra qual a noite
e com seu manto me revestia
trazendo contida em sí
vento...

Furacão...

Tormenta...

e calmaria...



Fábio che


terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Tempos modernos

Pobre aleijão que ao
Direito procura
E que trôpego arrasta-se aos pés alheio,
Pelo solo rijo do cansaço almeja a cura,
Lambendo úmidas chagas, bruto e feio.
Estirado, roto e enfermo: o maltrapilho
Engalana a mediocridade deste milênio.
N'agonia da falência, o mutilado filho,
Virou enxerto posto que não foi gênio!
Árdua labuta, nula, mas intensa;
Mecanismos seletivos e binários
Desfazem-se do ser quando este pensa
E reluta à diretriz sisuda dos horários.
Tecnologia ou Ciência Moderna,
Seja qual for teu sintético pensamento,
Saiba que arranca do operário a perna
Ao suprir sua força com teu invento!

Flauto

Erva daninha

Eu sou erva daninha

Planta que brota das rachaduras
Gerando mais rachaduras
E destruindo todo o concreto
Que até ontem parecia invencível
Sou a semente do devir
Que esteve soterrada sob a calçada
Contenho em mim a árvore
Sou e não sou semente ao mesmo tempo
Pois já sou planta, sou flor, sou fruto
Sou a floresta que há de brotar amanhã
Em todas as rachaduras
De teu concreto, sobrará poeira
De teu asfalto, o pedrisco
De tuas pedras, os pedaços
De tua suposta eternidade,
a impermanência
De teu império, a ruína



Don Paulo Quixote